Com mais de 255 milhões de usuários ao redor do globo, os aplicativos de distribuição fonográfica online como Spotify, Deezer e Apple Music mudaram a forma de consumir, ouvir e apreciar música
O ano é 1973. Imagine um mundo onde um grupo de amigos se senta em volta de um toca-discos para escutar o mais novo lançamento, datado em 1 de março deste ano, de um dos mais aguardados e icônicos álbuns da história da música: o “Dark Side of the Moon”, da banda britânica de rock progressivo Pink Floyd. Até aquele glorioso momento, os fãs do grupo tiveram de esperar os morosos trâmites da importação para conseguirem um exemplar desde disco de vinil no Brasil. Um item para poucos afortunados que tinham acesso à estas raridades em terras tupiniquins, e ainda, dinheiro de sobra para comprá-las.
Extasiados, estes jovens permaneciam em absoluto silêncio durante os 42 minutos e 53 segundos que totalizavam a duração das dez faixas do disco, apreciando cada detalhe e se surpreendendo com a massa sonora produzida pelo quarteto e toda a produção artística do álbum. O encarte era passado de mão em mão, manipulado com um respeito devoto às letras de contestação social e imagens do grupo que nele continham. Praticamente uma seita religiosa de reverência a uma das maiores obras-primas da música mundial. A situação paleontológica descrita acima é quase inimaginável para o jovem do século XXI, mas era rotina dos apaixonados por música antes do advento da internet, e consigo, o acesso imediato a bibliotecas musicais infindáveis.
Atualmente, se você, caro leitor, deseja ouvir o álbum citado acima na íntegra (o que eu, particularmente, aconselho), basta acessar um aplicativo de Streaming e digitar “Dark S” e pronto, para bom entendedor, meia palavra basta. Os algoritmos da programação irão deduzir – antes mesmo que você digite o título por completo – o que está sendo procurado e imediatamente você terá acesso, em primazia, às faixas do disco, na íntegra. Toda essa operação te custará pouco menos de dez segundos.
Streaming é o termo utilizado para transferência de dados em tempo real. Ao invés de realizar o download das músicas, o usuário tem acesso à uma extensa biblioteca musical a qualquer momento, desde que esteja conectado à internet. Dentre os aplicativos mais utilizados estão o Spotify, Napster, Deezer, YouTube Music e Apple Music. A facilidade de acesso aos acervos musicais transformou, de fato, como nos relacionamos com a música. A questão é: se para melhor ou pior.
Em abril de 2019, a Federação Internacional da Indústria Fonográfica (International Federation of the Phonographic Industry - IFPI) divulgou, em boletim oficial, os principais dados e estatísticas do mercado fonográfico mundial em 2018. O número de assinantes atingiu a marca dos 255 milhões. Segundo o documento, houve o aumento de 34% no setor de streaming como um todo (áudio + vídeo). O total do faturamento chegou a 11,1 bilhões de dólares, representando – apenas as plataformas de música digital – 58% do total do mercado mundial.
No Brasil, indo na contramão do cenário político e econômico, houve um relevante crescimento no segmento musical digital. Ainda segundo o relatório da IFPI, foi constatado um aumento de 38% em relação a 2017, representando US$ 216,2 Milhões, que equivalem a 72,5% do mercado total (vendas físicas e digitais).
Com a evolução, artistas não tem mais sua renda proveniente da venda de discos. Em contrapartida, recebem de acordo com o número de plays (execuções) nos aplicativos. O impacto movimentou a indústria fonográfica de tal forma que as próprias gravadoras tiveram de se reinventar. Nessa perspectiva, como tais mudanças afetaram nossa relação com a música?
Simples: de um lado, à distância de alguns cliques, temos milhões de músicas a serem exploradas para enriquecer nossa experiência cultural e pessoal. Mesmo se escutadas em sequência ininterruptamente, precisaríamos aumentar a expectativa de vida do ser humano para 547 anos para conseguirmos ouvir tudo. Por outro lado, temos a função algorítmica dos aplicativos mapeando nosso gosto pessoal, nos inserindo em uma bolha de “mesmices musicais” e nos blindando de novos conteúdos que possivelmente gostaríamos se a nós fossem apresentados. O ouvinte de Miles Davis não precisa necessariamente ter Pablo Vittar como sugestão. Mas é aí que cabe a reflexão.
Os apps são programados para diagnosticar o “perfil” do usuário, baseado em algoritmos de dedução que sugerem artistas e gêneros musicais semelhantes aos frequentemente escutados. Por exemplo, se para determinado perfil o gênero jazz é ouvido assiduamente, o serviço dificilmente irá sugerir uma playlist que contenha reggaeton ou heavy metal. A não ser que, surpreendentemente, a tecnologia algorítmica do software consiga associar quaisquer semelhanças entre os dois gêneros.
Não quero sugerir que o Spotify deva recomendar um álbum do Miles Davis para um ouvinte assíduo de Exaltasamba. Mas que os ouvintes de ambos os gêneros estejam mais abertos a novos tipos de escuta, de sonoridade e de experiências de apreciação musical, para que possamos diminuir as barreiras – por vezes preconceituosas – de gênero musical, erguidas pelos próprios apps.
Todos temos preferências diferentes, e é nessa diversidade que reside a riqueza da música. Por isso, como meta para 2020, ligue o “inovômetro” do seu aplicativo. Pesquise gêneros musicais, álbuns, compositores, artistas que não fazem parte do seu repertório habitual e permita surpreender-se. Não se preocupe caso, no final do ano, sua playlist “As mais tocadas de 2020” tenha Beatles, Mozart, Anitta, Louis Armstrong, Tom Jobim e Zeca Pagodinho.
Eduardo Assad Sahão
Músico e Jornalista